HISTÓRIAS DO MUNDO DA BOLA / Lenivaldo Aragão

 

Sherlock em momento festivo (Arquivo do Blog)


 

Sherlock, o homem da lei, dos ditos jocosos e das muitas expulsões



 

Argemiro Félix de Sena, o popular Sherlock, primeiro árbitro de Pernambuco a entrar no quadro da Fifa, o que aconteceu em 1938, pertenceu a uma geração de juízes de futebol que colocavam sua autoridade acima de tudo. Apesar disso, era um gozador nato. Inteligente e bem informado, pois lia muito, tornando-se ao mesmo tempo uma figura folclórica. Fazia parte da paisagem do centro do Recife, pontificando na Av. Guararapes, no circuito Sertã, Savoy, Brahma Chopp e antes, no Café Lafayete, todos desaparecidos. Nesse espaço circulavam diariamente, inúmeros desportistas, torcedores, jornalistas e boateiros, tudo gente ligada ao futebol.

Todos deleitavam-se com suas histórias e com os termos que usava, em tom de brincadeira, ao se dirigir aos subordinados ou pessoas mais chegadas, como, “facínora”, “elemento deletério”, “fariseu”, “energúmeno” etc. Fumava muito, só não comprava cigarro.

Na adolescência devorava tudo o que podia sobre o detetive Sherlock Holmes, criação do escritor escocês Conan Doyle. Na escola divertia os colegas contando os sucessos de seu herói. 

Certo dia houve um roubo em plena sala de aula. Um sanduíche desapareceu da banca de uma aluna. Sherlock, até então tratado pelo nome, Argemiro, incentivado pela turma fez as vezes do personagem que tanto admirava. Numa minuciosa investigação, chegou ao ‘ladrão’. Descobriu que um dos alunos tinha os dedos sujos de tinta verde. Deu o tiro certo porque a única pessoa que usava aquela cor no conteúdo do tinteiro era a dona do sanduíche. Os colegas passaram a chamá-lo de Sherlock. O apelido ficou para o resto da vida.

DE PONTA A ZAGUEIRO

Antes de entrar para a arbitragem, Sherlock foi jogador, tendo sido tricampeão pelo Santa Cruz em 1930-31-32. Nascido na casa 128 da Rua Imperial, ainda menino formou um time, o Guanabara. Na área havia outra equipe, o Concórdia, em que atuavam Carlos Benning e Lauro, do terceiro time – o sub 20 de hoje – do Santa Cruz. Convidaram-no para um teste no Arruda. O ponta-direita Sherlock topou, mas foi escalado para treinar na zaga, pois um dos titulares havia faltado. Aprovou na nova posição e foi logo assinando a proposta de sócio-atleta. Só precisou fazer dois jogos para imediatamente ser promovido ao segundo time. Não foi difícil chegar à equipe principal. Isso aconteceu em 1930, e no ano seguinte, o zagueiro Sherlock ajudou o Santa a tirar o pé da lama, conquistando seu primeiro título de campeão pernambucano, proeza repetida nos dois anos seguintes.

Sherlock acompanhando a troca de flâmulas antes de um jogo do Íbis (Arquivo do Blog) 


CABELO, BARBA E BIGODE

Em 1934, encerrada a curta carreira de jogador, foi aprovado pela Liga Pernambucana de Desportos Terrestres para apitar jogos dos terceiros times. Em certo domingo, pela primeira vez dirigiu uma partida por aquela categoria. Saiu-se bem. Era um clássico entre Sport e Náutico. À tarde, como um torcedor comum, foi assistir ao encontro dos rubro-negros com os alvirrubros pela categoria principal. O árbitro da preliminar faltou. Convidado, não titubeou em apitar o duelo entre os segundos times, posteriormente chamados de aspirantes.

Para completar, o juiz do jogo para valer também farrapou. Sabem quem o substituiu? Ele mesmo, Sherlock. Que assim estreou na arbitragem oficial, fazendo cabelo, barba e bigode, no grande Clássico dos Clássicos. Preparo físico para isso tinha, pois além do futebol participava de corridas e era remador. Na época, o futebol era puramente amador, jogava-se só por prazer.

FIEL CUMPRIDOR DA LEI

Fiscal do ECAD (entidade brasileira responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas aos autores e demais titulares), era visto nos fins de semana, de paletó e chapéu, indo de um clube a outro do subúrbio para fazer a fiscalização relacionada com os direitos autorais. Tinha uma resposta curta e grossa, quando alguém, chiava com suas exigências. “É a lei”, respondia com voz pausada e em tom grave. Esta expressão era usada também dentro de campo diante de alguma reclamação. Ficou sendo conhecido como O Homem da Lei.

E O VENTO LEVOU

Ao longo da carreira, os casos – verdadeiros – tendo Sherlock como personagem corriam de um canto a outro. Um dia expulsou Pitota, do Sport, num clássico com o Náutico. Como Pitota relutasse para sair, chegou-se a ele e disse, arrancando sorrisos de outros jogadores que assistiram à cena: “Se você sair depressa e tomar um banho rápido, ainda terá tempo de assistir ao filme E o Vento Levou, no Art Palácio”.

Noutro Clássico dos Clássicos expulsou o mesmo Pitota, Zé Pequeno, Clóvis e Zago, do Sport; Sabino e Mário Ramos, do Náutico. Portanto, seis expulsões numa só partida.

Num Sport x Great Western – virou Ferroviário – marcou a cara de um torcedor que passou o jogo ‘elogiando’ sua mãe. Encerrada a. partida, pulou a cerca baixinha, que separava o campo do público, e sem ao menos conversar, meteu a mão no pé do ouvido do homem, que se chamava Floriano. Este, tempos depois, o reencontrava na Federação. Tinha ido se submeter a um teste para juiz, sendo examinado pelo antigo algoz. Foi aprovado.

 

A LEI CONTRA HELENO DE FREITAS

Dirigindo um Fluminense x Botafogo pelo Campeonato Carioca, em dado momento, Sherlock advertiu o botafoguense Geninho. O jogador do Clube da Estrela Solitária tinha insinuado que o juiz estava protegendo Ademir, do Flu, pernambucano como ele.

Eram decorridos apenas 17 minutos de jogo, quando o genial e genioso Heleno de Freitas, do Botafogo, e Gualter, do Fluminense, se estranharam. e tiveram que ir ver o jogo da arquibancada por terem sido expulsos. Atitude muito comentada pela imprensa nacional, pois não era qualquer árbitro que tinha coragem de mandar o temperamental Heleno para o chuveiro, ainda no começo da partida.

O ex-árbitro caricaturado pelo contemporâneo  Félix (Arquivo do Blog)/


De outra feita, Sherlock foi a Salvador apitar uma final do Campeonato Baiano em que o Bahia derrotou o Galícia por 3x0 e fez a festa. Mais seis jogadores expulsos: Fala-Baixinho, Dino, Paulo Teiú e Valter, do Galícia; Viana e Camerino, do Bahia.

 

O CRONÔMETRO

Durante algum tempo, Sherlock alimentou uma certa rivalidade com seu colega de arbitragem e amigo José Mariano Carneiro Pessoa, o célebre Palmeira, que depois passou a ser técnico.

Palmeira certa vez apareceu no Café Lafayete, esquina da Rua do Imperador com a 1º de Março, o point do futebol naquela época, exibindo um cronômetro, o qual podia ser parado quando o jogo fosse interrompido. Uma estupenda novidade que foi até notícia de jornal.

Sherlock ficou juntando dinheiro e só descansou quando conseguiu comprar um, igualzinho, a um gringo que vendia muamba.

 

NAS ONDAS DA PRA 8 Em 1938, o Homem da Lei estreou no Campeonato Brasileiro de Seleções, dirigindo Paraíba x Rio Grande do Norte. Preparou-se com esmero para esse encontro. É que pela primeira vez, um jogo por ele comandado seria transmitido pela Rádio Clube, a velha PRA 8, única emissora existente em Pernambuco naquele tempo. O alagoano José Renato narrava e o pernambucano Antônio Maria – mais tarde, famoso cronista e compositor – lia as mensagens comerciais.

MISTER BARRICK DA MANGUEIRA

Ainda em 1938, Sherlock foi o primeiro árbitro pernambucano a apitar de calção. Coisa improvisada, nada programado. Escalado para um Náutico x Sport, preparou o uniforme com o capricho de sempre: calça e camisa brancas, engomadinhas, e tênis da mesma cor. Chegou ao campo da Jaqueira debaixo de um tremendo temporal. Com o gramado enlameado teve pena de sujar a calça. Pediu emprestados um calção e um par de chuteiras a um dos times e resolveu o problema. Não evitou que o público lhe presenteasse com uma sonora vaia, por não estar acostumado com aquele traje na arbitragem. Tempos depois passou pelo Recife um árbitro inglês, Mr. Barrick, que acompanhava a equipe do Vasco numa excursão ao Nordeste. O britânico apitava de calção.

Depois que o europeu foi embora, Sherlock passou a usar o novo uniforme, definitivamente. Para reproduzir a vestimenta daquele que lhe serviu de espelho, cortou uma calça velha, azul, usando camisa branca e paletó azul. Como os torcedores acharam que se tratava de pura imitação, passaram a chamá-lo de “Mister Barrick da Mangueira”, em alusão ao popular bairro recifense da região de Afogados, onde havia uma turma da pesada.      



 

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