Treinar a Cacareco enriqueceu o currículo do técnico Gentil Cardoso |
A notícia da escolha de Pernambuco para
representar o Brasil numa competição
internacional ressoou como uma bomba. Em suas constantes entrevistas a jornais
e rádios, o presidente da Federação Pernambucana de Futebol (FPF), o irrequieto
Rubem Moreira, sintetizava o estado de espírito que havia tomado conta dos
torcedores.
– Qual é o Estado que não se sentiria
orgulhoso e vaidoso de representar o País – disse mais de uma vez o Comodoro,
como também era conhecido.
Vaidoso, o cartola mor de Pernambuco
regozijava-se por ter levado a melhor para Minas Gerais, que também
aspirava à vaga.
Rubem Moreira: felicidade |
Logo surgiram críticas no Rio e em São
Paulo. Dizia-se que era uma temeridade, pois o título de campeão mundial conquistado em 1958, na Suécia,
ainda ecoava, e o prestígio do futebol nacional estava ameaçado. No dia 21 de
maio de 1959, o jornal A Gazeta Esportiva,
de São Paulo, chegou a dizer que se estava “cometendo um
crime contra o futebol brasileiro”.
A missão de comandar a Seleção
Brasileira foi dada a Gentil Cardoso, um técnico rodado, nascido no bairro da
Torre, no Recife, mas de vivência carioca. No Rio desempenhou várias atividades
até passar a servir a Marinha, da qual saiu como suboficial, tendo tido também
uma passagem pela Aeronáutica. Tinha um bom nível de conhecimentos gerais e queixava-se de nunca
ser lembrado pela CBF para dirigir a Seleção por ser negro, embora se sentisse
capacitado.
Autor de frases célebres, como “quem se
desloca recebe, quem pede tem preferência”, e “a bola é feita de couro, o couro
vem do boi, o boi come capim, portanto, a bola gosta de correr na grama”, ou
“deem-me Ademir que eu lhes darei o campeonato” (palavras
dirigidas em 1946 aos dirigentes do Fluminense, pelos quais foi atendido,
tendo cumprido a promessa), Gentil Alves Cardoso tinha
sido campeão pernambucano com o Sport, em 1955, ano do
cinquentenário rubro-negro, e acabara de dar o título de 1959 ao Santa Cruz. A
indicação de seu nome teve aprovação unânime.
APELIDO DEPRECIATIVO
Ao fazer a convocação dos jogadores, o
treinador chegou à conclusão de que era
necessário trazer reforços. Rubem Moreira não perdeu tempo, e logo houve um
acerto com quatro atletas experientes, que estavam ‘encostados’ no Rio e em São
Paulo, mas de qualidades reconhecidas. Como não poderiam ser vinculados diretamente à Federação
Pernambucana de Futebol (FPF), foram inscritos pelos clubes, nesta ordem: Edson,
zagueiro do América-RJ (Santa Cruz), Servílio, centromédio do Botafogo (Sport),
Paulo, centroavante do Corinthians (Náutico) e Goiano, ponta-esquerda do
Palmeiras (Santa Cruz). Em virtude de não virem jogando e por já serem chegados
nos anos, foram considerados um monte de ‘ferro velho’.
Aramis Trindade 'batizou' a Seleção |
Logo começou-se a tratar a equipe como
Seleção Cacareco. O termo cacareco
figura nos dicionários, referindo-se a traste velho ou coisa imprestável. É
muito comum as pessoas referirem-se a “meus cacarecos” ao mencionar objetos,
utensílios ou móveis desgastados.
Há
uma versão, segundo a qual a
denominação depreciativa teria sido criada no Sudeste. Todavia, o achincalhe
foi assumido por Aramis Trindade, um gozador nato, editor de Esportes do Diário da Noite. Este era um vespertino
da Empresa Jornal do Commercio, de linguagem mais popular, contrastando com a
seriedade de seu coirmão, o matutino Jornal
do Commercio.
Cronista esportivo e advogado, Aramis,
que morreu em 2004, era filho de jornalista. Seu pai, Aristófanes da Trindade,
trabalhou na Folha da Manhã e no Diario de Pernambuco. Foi também diretor
do Santa Cruz, tendo chefiado a célebre Embaixada Suicida, em 1943, quando
morreram os jogadores King e Papeira, de tersã maligna, um tipo de febre
amarela.
Aramis, tricolor como o pai, usava o pseudônimo
Cabo Tino para assinar uma divertida coluna intitulada Coisas de Mercenários,
na qual exercitava intensamente sua criatividade, levando tudo na base do humor.
Assim, o negro Ananias, lateral do
Santa Cruz, “baixo, torado no grosso, cujo pescoço parecia um rolo de
coqueiro”, como o jornalista o definia, foi eternizado como O Galã das Gerais. Na época, a torcida coral
espalhava-se pelas gerais, nos Aflitos e na Ilha do Retiro.
O Sport era chamado de O Papai da Cidade, ao mesmo tempo em que
Gentil Cardoso aparecia nas páginas do DN,
como O Divino Mestre.
O bairro onde está situado o Santa
Cruz passou a ser chamado de Repúblicas
Independentes do Arruda. Aramis criou também O País de Caruaru, quando da entrada do Central no Campeonato
Pernambucano, em 1961.
Na época do auge do Náutico, na década
60, o time alvirrubro rinha o rótulo de Os
Intocáveis, título de um livro e depois filme sobre a perseguição de um
grupo de policiais incorruptíveis ao gangster Al Capone. O atacante Bita, do Timbu,
que tinha um chute poderoso, com os dois pés, era O Homem do Rifle, em alusão a um seriado da televisão.
Num tempo em que o Náutico era chamado
de O Aristocrático, enquanto no ‘Palacete’
da Av. Conselheiro Rosa e Silva realizavam-se o Baile das Debutantes, Encontro de Brotos etc., Aramis chacoalhava seu
Santa Cruz, anunciando festas, como, Cuscuz
ao Luar e Sarapatel Dançante.
Mais tarde, quando da passagem da
Cacareco pelo Rio de Janeiro, em trânsito para o Equador, ao ser interrogado
sobre a designação um tanto aviltante dada à sua seleção, Gentil Cardoso dizia ter
sido coisa de um jornalista pernambucano “despeitado por não ter sido convidado
para acompanhar a delegação”.
Vale salientar que durante muitos anos
por determinação do Conselho Nacional de Desportos (CND), qualquer equipe
brasileira que fosse ao exterior deveria levar um jornalista. Este, além das
notícias de praxe, tinha a incumbência de, no regresso, enviar àquele órgão um
circunstanciado relatório sobre a viagem. No caso da Cacareco estavam incluídos
dois representantes da mídia, Adonias de Moura (Diario de Pernambuco) e Jorge Costa (Jornal do Commercio).
PRIMEIROS PASSOS
Havia muita expectativa quanto aos
jogadores que o técnico Gentil Cardoso convocaria. Não faltavam palpites. Nas
rodinhas na calçada do Bar Savoy existiam algumas unanimidades. Uma delas era o
goleiro Waldemar, do Náutico, um jovem que tinha sido contratado ao São Paulo
após uma temporada do tricolor paulista no Recife.
Waldemar, goleiro preferido pelo povo |
O volante Zé Maria, do Sport, e o meia
ponta-de-lança Zé de Melo, do Santa Cruz, também eram tidos como presenças certas na
lista que seria apresentada por Gentil. Sucediam-se as apostas, como quem seria
o meia-de-ligação entre Geraldo (Náutico), Moacir (Santa Cruz) e Elcy (Sport).
No dia 9 de outubro, os amantes do
futebol ficaram de ouvidos colados ao rádio para ouvir pela Clube, Jornal e Olinda o anúncio dos nomes
dos convocados. Tratava-se, na realidade, de uma pré-convocação. Após avaliações
médicas seria elaborada a relação definitiva. Os pré-convocados foram:
Goleiros
Walter (Santa Cruz)
Waldemar (Náutico)
Renato (Ferroviário)
Jagunço (Íbis).
Laterais direitos
Nancildo (Náutico)
Geroldo (Santa Cruz)
Bria (Sport)
Laterais esquerdos
Givaldo (Náutico)
Hélmiton (Náutico)
Ney Andrade (Sport)
Dodô (Santa Cruz)
Zagueiros centrais
Zequinha (Náutico)
Edson (Santa Cruz)
Amâncio (Ferroviário)
Centromédios
Servílio (Sport)
Tomires (Sport)
Carvalho (Santa Cruz)
Clóvis (Santa Cruz)
Médios volantes
Biu (Santa Cruz)
Zé Maria (Sport)
Meias de ligação
Moacir (Santa Cruz)
Elcy (Sport)
Geraldo (Náutico)
Vantu (Íbis)
Pontas direitas
Tião (Santa Cruz)
Traçaia (Sport)
Manoelzinho (Asas)
Meias pontas de lança
Zé de Melo (Santa Cruz)
Bé (Sport)
Joca (Ferroviário)
Centroavantes
Paulo (Náutico)
Osvaldo (Sport)
Neco (Ferroviário)
Pontas esquerdas
Mainha (Santa Cruz)
Goiano (Santa Cruz)
Elias (Náutico)
Fernando (Náutico)
Ivaldo (Íbis)
O número de 38 convocados foi
considerado exagerado. Teria sido uma maneira de agradar a gregos e troianos.
Sabia-se, de antemão, que na hora do corte dos goleiros, por exemplo, o
eficiente, porém, tímido Renato, e o esforçado Jagunço só por um milagre
tomariam as vagas de Walter e Waldemar, o mesmo acontecendo noutras posições em
que atletas dos clubes pequenos fossem confrontados com ‘gente graúda.’
MÉDICO DA CBD NA APRESENTAÇÃO
No dia 3 de novembro, com a presença de
Hilton Gosling, médico da Seleção Brasileira, e do supervisor da CBD, Mozart di
Giorgio, houve a apresentação dos jogadores, no Santa Cruz, escolhido como
local dos treinos e da concentração. Chamado de Alçapão do Arruda, o campo
tricolor não tinha a posição atual. As barras eram situadas onde estão hoje as
arquibancadas, uma no lado da Av. Beberibe, e a outra na parte que dá para a
Rua Rosa Gatorno.
O local era cercado por coqueiros e mangueiras, havendo uma
tosca arquibancada de madeira no trecho da Rua das Moças, onde ficava o
apertado portão de entrada. Tendo sido
Gentil treinador do Santa Cruz, até dias atrás – seria substituído pelo carioca
Ricardo Magalhães – chegou-se à conclusão de que haveria mais facilidades para
o desenvolvimento dos trabalhos num ambiente que o treinador conhecia de olhos
fechados.
Coube ao supervisor da Seleção, o
gerente de banco Ivanildo Souto da Cunha, o ex-jogador Ivanildo Espingardinha,
do Náutico, fazer a apresentação do elenco.
Hilton Gosling falou da responsabilidade dada aos jogadores |
Quase em tom de discurso, Hilton
Gosling lembrou aos convocados que estaria em jogo o bom nome do futebol
brasileiro.
– Essa responsabilidade – advertiu – é
dos jogadores, que devem esquecer as rivalidades para, unidos, defenderem o
prestígio do futebol nacional.
Todavia, o médico oficial da CBD não
figurava na relação dos que iriam viajar, e a missão foi confiada a um dos três
integrantes do departamento médico da FPF, Laudenor Pereira, que também era
narrador da Rádio Clube de Pernambuco, onde
também atuava seu irmão, o comentarista Itamar Pereira, mais tarde
desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Para auxiliar Laudenor na
Seleção foram requisitados os massagistas/enfermeiros João de Maria, do Santa
Cruz, e Edmundo Lopes, do Estudante, clube recifense situado na Av, Liberdade,
no Barro. Edmundo acumulava a função de roupeiro.
Começaram os exames médicos para evitar
que jogadores lesionados fizessem parte da lista definitiva, criando
dificuldades para a Comissão Técnica.
O Alçapão do Arruda passou a viver uma
grande movimentação, com a presença permanente da imprensa e dos torcedores,
que tudo presenciavam, das arquibancadas de madeira existentes no lado da Rua
das Moças.
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