Embaixada Suicida: Chega ao fim a histórica excursão



Reaberto o tráfego marítimo, a esperança estava de volta. Março ia terminando. É claro que não saía da mente dos jogadores do Santa Cruz a lembrança dos companheiros Ericsson Viana (King) e Mário Braga (Papeira), cujos corpos estavam sepultados em Belém. Que drama as duas famílias estavam vivendo em Pernambuco, sabendo que a caravana tricolor um dia voltaria à capital pernambucana, mas seus entes queridos, não. De qualquer maneira era preciso passar por cima de mais esse obstáculo vivido na acidentada excursão.

Enfim, uma boa notícia. Um navio partiria para o Sul, passando pelo Nordeste. Depois de tanto tempo surgia a oportunidade do retorno. Os jogadores ficaram a contar os dias até que chegou o momento de entrarem no mar novamente. A bordo de um rebocador, estavam a caminho do navio que os traria de volta a Pernambuco. Mas quem disse que o sofrimento daquele pessoal estava terminando? Para a decepção de todos, antes de o rebocador alcançar o paquete, vinha a contraordem. O vapor recebera uma carga inflamável e seria temerário o embarque de um só passageiro, que dirá de uma turma? Era mais uma dose de sofrimento na conturbada vida que os corais estavam levando. 

O Santa no início da excursão. Em pé, Pedrinho, Pelado, Omar, Eutímio, King (+), Amaro Caju, Sidinho II e Pinhegas; agachados, Limoeirinho, Guaberinha, França, Papeira (+), Sidinho e Capuco 

– Tentou-se um barco a vela para chegarmos a São Luís, mais ia sair muito caro, pois além do fretamento teríamos que nos encarregarmos da alimentação, inclusive, para a tripulação – afirmou Aristófanes da Trindade.

De novo em Belém, vendo o tempo passar. Os jogadores já haviam perdido a paciência e mostravam-se extremamente estressados com seu isolamento a 2.095 quilômetros, ou 1.131 milhas marítimas, de casa, sem praticamente receber notícias dos familiares.

LADRÕES A BORDO

O mês de março corria solto, no embalo da Segunda Guerra Mundial. Finalmente, o tricolor pernambucano fez-se ao mar rumo ao Recife, num paquete do Lloyd Brasileiro, que integrava um comboio de três navios.  Com a morte de King e Papeira, e a decisão de Sidinho, Omar e Pelado de ficarem em Manaus, a equipe estava reduzida a 12 jogadores, incluindo o meia-esquerda Carapanã, que havia sido contratado no Pará.

Era prevista uma demora de quatro dias em São Luís. Para juntar algum dinheiro, os jogadores haviam trocado as passagens de primeira classe pelas de terceira, no que foram seguidos pelo chefe da delegação e pelo árbitro. Dessa maneira tiveram que viajar em companhia de uma corja de ladrões maranhenses que a polícia do Pará estava deportando para seu Estado natal. Aristófanes fala em 18; segundo Guaberinha eram 35. 

Por via das dúvidas, as 15 taças que o clube havia conquistado, foram cuidadosamente guardadas pelo comissário de bordo. Os delinquentes terminaram fazendo camaradagem com os jogadores. Dormia-se lado a lado, e apesar da “amizade”, os componentes da delegação coral estavam armados, ao contrário dos fora-da-lei.  
– Mais tarde, quando passamos pelo Ceará, até reencontramos alguns deles – lembrou Guaberinha.


Tricolores entrando em campo, em Belém. Na frente, à direita, Guaberinha e seu habitual gorro


MAIS CONTRATEMPO

Em São Luís, a bela capital maranhense, de casas seculares revestidas com magníficos azulejos portugueses, mais um golpe na já fragmentada resistência dos corais.  O navio ficaria retido e só retomaria seu roteiro quando aparecessem outros barcos que demandassem a mesma rota, para formarem um comboio.  Comandante algum se arriscaria a enfrentar a perigosa travessia sozinho. Apesar do estresse, novos amistosos foram acertados, na base da renda meio a meio. Resistir era preciso.  Mais um item do relato da chefia da delegação:

– Os navios não atracavam. Ficavam lá fora, no ancoradouro. Vinha-se a terra, de lancha. Fui à cidade e deixei um amigo, diretor da entidade maranhense, encarregado de conseguir amistosos durante nossa estada, na base de 50 por cento. Tudo o que se arrecadasse seria dos jogadores, reservando-se uma porcentagem para as despesas eventuais, que seriam imprevisíveis. Num desses jogos, Capuco e Edésio se machucaram, ficando a equipe reduzida a dez jogadores. No prélio contra o Moto Club, o cozinheiro do navio, que, quando menino jogara no juvenil do Vasco da Gama, entrou no lugar de Capuco. Estava totalmente fora de forma, mas deu certo. Era o que se podia chamar de ‘caceteiro’.
Jogo tumultuadíssimo, com duas tentativas de invasão de campo. O Santa Cruz, a despeito de ter um centromédio que desconhecia, era uma equipe homogênea, lutadora, ‘raçuda’. Felizmente, tudo acabou em paz, segundo informou Aristófanes.

TEMPORAL E SUBMARINOS 

Na véspera de mais uma apresentação do Tricolor em São Luís, depois de cinco jogos,  o comandante do navio avisou que a partida seria naquela madrugada. Todos deveriam estar a bordo às 22 horas, o que aconteceu. Por volta da meia-noite um novo comboio singrava o Atlântico, e a turma do Santinha sentia-se no caminho de casa. Os navios destinavam-se a Fortaleza e eram protegidos, como sempre, por duas embarcações da Marinha de Guerra. Tudo parecia tranquilo, todavia, aos primeiros sinais do amanhecer desabava um enorme temporal.
– De imediato – contou Aristófanes Trindade em seu relatório reportagem – sentiu-se que o barco estava voltando, ziguezagueando em pleno mar. Ouviam-se os silvos estridentes dos outros navios, sob intenso nevoeiro. Às 9 horas entrávamos novamente no porto de São Luís, quando se teve a notícia: o radar acusara a presença de submarinos.


Guaberinha teve papel destacado


EM CIMA DOS TRILHOS

Haveria nova demora do navio na capital maranhense. Era demais para a paciência daqueles sofredores, que pediram para deixar a embarcação, mesmo perdendo as passagens. Somente completariam a viagem, seguindo por terra. Com aquele vaivém nunca se saberia quando poderiam sair do Maranhão, em comboio. E ainda havia a ameaça da presença de submarinos na área. Perdiam-se as passagens, mas isso era o de menos, raciocinaram. 

Assim, a embaixada desembarcou outra vez em São Luís, capital do Maranhão. Os tricolores alojaram-se num hotel por 24 horas, a fim de seguir para Teresina.
Os jogadores propuseram ao chefe da delegação esquecer o deslocamento por via marítima, optando pelo deslocamento por terra. A proposta foi aceita, tendo a delegação coral, depois de um descanso na capital do Maranhão, feito de trem o percurso de 433 quilômetros entre São Luís e Teresina.

A viagem transcorreu sob imenso calor. Para dar continuidade ao corolário de agruras sofridas pela Cobrinha, o trem desencarrilhou duas vezes. Ainda bem que sem maiores consequências. A turma não se alterou, vez que um transtorno a mais ou a menos para quem já estava vacinado contra os imprevistos, não queria dizer nada. O percurso ferroviário entre São Luís e Teresina foi cansativo e demorou muito por causa dos incidentes na composição. Depois de um dia inteiro de viagem, a chegada a Teresina.

“Eu penei, mas aqui cheguei”, cantaria anos depois o sertanejo de Pernambuco Luiz Gonzaga no baião Pau de Arara.

 Quando ainda se encontrava em São Luís, Aristófanes havia telegrafado ao presidente da Federação Piauiense, pleiteando a realização de um ou dois jogos.

– Recepção excepcional. Grande acolhida do povo, ocasionando muito boa renda, dividida irmãmente – relatou o chefe da delegação.

A aventura tricolor foi contada, muitos anos depois, pela revista Placar


ENFIM, EM CASA

A partir de Teresina, mais 592 quilômetros, agora de ônibus, rumo a Fortaleza. Também houve jogo na capital cearense, tanto pela curiosidade de a torcida conhecer a Embaixada Suicida, como pelo interesse em ver um jogador local, o atacante França, vestindo a camisa do tricolor pernambucano.

Na Terra de Iracema, o time do Arruda completou 25 jogos na excursão. A essa altura, todos os clubes faziam questão de jogar com o tricolor pernambucano. Embora o time estivesse esfacelado, a Cobra Coral era atração onde quer que chegasse.  Capuco havia se restabelecido e Edésio estava em boas condições física e técnica. O pequeno elenco mostrava-se satisfeito, pois os salários estavam em dia e os ‘bichos’pagos na hora. Os jogos em Fortaleza marcaram a última etapa da excursão, que já se prolongava por três meses.

Finalmente, o Santinha pegou a estrada outra vez para percorrer mais 789 quilômetros, rumo ao Recife. Jogadores desgastados fisicamente, porém, alegres e ansiosos pelo reencontro com os parentes. Horas antes da chegada, por volta da meia-noite, para variar, um último incidente, assim narrado por Guaberinha:

– Passamos em Itambé e andamos soltando umas lorotas. A polícia mandou o ônibus parar. Mas depois que verificou que se tratava do Santa Cruz, liberou a delegação.
Na chegada, o derradeiro momento de tristeza vivido por aquela rapaziada: a mala com os pertences de Papeira foi entregue à sua família; a de King, não. Havia caído no mar, no tumultuado desembarque em São Luís após a decisão de terminar a viagem por terra.

A direção do Santa Cruz recebeu seus atletas em sessão informal e solene a um só tempo, quando tomou conhecimento do esmerado e histórico apresentado pelo presidente da Embaixada Suicida, Aristófanes da Trindade.

– Todas as luvas atrasadas, inclusive, a dos jogadores que não viajaram, haviam sido liquidadas, e os atletas que se agregaram à embaixada foram muito bem pagos. O Santa Cruz não deixara dívidas de quaisquer espécies, a não ser as de gratidão aos paraenses – escreveu Aristófanes.

A equipe do Santa Cruz chegou ao Recife nos últimos dias de abril de 1943, quatro meses depois da partida, que ocorrera em 2 de janeiro. Tratava-se de uma viagem projetada para durar apenas um mês, mas que teve que ser imensamente prolongada, face às circunstâncias especiais que o mundo vivia naquela época.

OS JOGOS DA EXCURSÃO

02/01-Santa Cruz 6 x 0 Seleção do Rio Grande do Norte – Natal
10/01-Santa Cruz 7 x 2 Tranviário – Belém
14/01-Santa Cruz 3 x 1 Tuna Luso – Belém
17/01-Santa Cruz 2 x 5 Remo – Belém
21/01-Santa Cruz 3 x 3 Seleção do Pará – Belém
24/01-Santa Cruz 4 x 4 Paysandu – Belém
07/02-Santa Cruz 2 x 3 Olímpico - Manaus
11/02- Santa Cruz 5 x 1 Rio Negro – Manaus
14/02- Santa Cruz 6 x 0 Nacional – Manaus
19/02- Santa Cruz 5 x 4 Rio Negro – Manaus
22/02- Santa Cruz 1 x 2 Seleção amazonense – Manaus
02/03- Santa Cruz 4 x 2 Remo – Belém
08/03- Santa Cruz 1 x 1 Paysandu – Belém
14/03 -  Santa Cruz 0 x 0 Tuna Luso – Belém
18/03 – Santa Cruz 3 x 3 Combinado Remo/Paysandu – Belém
21/03 – Santa Cruz 2 x 5 Tuna Luso – Belém
24/03 – Santa Cruz 1 x 0 Tuna Luso – Belém
28/03 – Santa Cruz 1 x 2 Tranviário – Belém
04/04  - Santa Cruz x AFC (resultado desconhecido) – São Luís
08/04 -  Santa Cruz 1 x 0 Moto Clube – São Luís
11/04 – Santa Cruz 3 x 0 Sampaio Corrêa – São Luís
13/04 -  Santa Cruz 2 x 2 Seleção do Maranhão – São Luís
15/04 – Santa Cruz 1 x 0 Moto Clube – São Luís
18/04 -  Santa Cruz 4 x 3 Seleção Piauiense – Teresina
25/04 -  Santa Cruz 2 x 3 Ceará - Fortaleza

Em 25 jogos, 12 vitórias, 6 empates, 6 derrotas e 1 resultado desconhecido,  68 gols a favor e 46 contra; saldo de 22.




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