A
excursão do Santa Cruz naquele agitado primeiro trimestre de 1943, cada vez
mais ganhava novos lances notáveis. E a impossibilidade de retornar ao Recife
aumentava o grau de dramaticidade daquela excursão. Viajar de avião era
praticamente impossível, pois não havia tantos voos disponíveis, como nos dias
atuais, principalmente para tão longe. Além disso, as passagens aéreas, se houvesse
alguma aeronave disponível, custavam os olhos da cara. Esta possibilidade
chegou a ser cogitada, no entanto, foi logo arquivada.
Faziam-se
por via marítima os deslocamentos em longa distância. Era assim que se movimentavam
pelo País as delegações esportivas, empresários, políticos, artistas etc. Os
navios da linha Ita despertavam a atenção pelos serviços prestados à população,
de Norte a Sul, como o Brasil era dividido política e geograficamente, na
época. Naquelas embarcações, seus nomes, indígenas, começavam com a palavra ita, que, no idioma tupi guarani
significa pedra. Só alguns exemplos: Itaquicé, Itapé, Itanagé, Itahité, Itaimbé, Itapagé, Itaberá,
Itagiba, Itaguassu, Itaipu, Itajubá, Itapema, Itapuca, Itapuhy, Itapura,
Itaquara, Itaquatiá, Itaquera,, Itassucê, Itatinga e Itaúba.
O goleiro King ficou enterrado em Belém |
A
grande dificuldade é que nenhum desses poderia cruzar as águas brasileiras por
força do decreto federal. Mas esta não era a única aflição vivida pelos jogadores
da Cobra Coral, como se pode auferir deste trecho do relatório final do chefe
da delegação, jornalista Aristófanes Trindade:
–
Solucionado o problema de Pedrinho, havia os de King e Papeira. As rendas
escassas davam apenas para as diárias de alimentação da embaixada e respectivos
salários. As despesas de tratamento também pesavam na balança. Os jogadores
prontificaram-se a colaborar e abriram mão dos ‘bichos’. Queriam receber apenas
os salários e as diárias das refeições. Sabiam dos grandes problemas que todos
estavam enfrentando, sem poder sair de Belém.
Vale
salientar que o terror havia se espalhado pelas águas territoriais brasileiras,
antes mesmo de o Santa Cruz lançar-se na maior aventura de sua história. O
dirigente tricolor Dirceu Paiva, que cuida de preservar a saga do clube, no
memorial localizado na sede do Arruda, num espaço que, com muita justiça leva o
seu nome, é um apaixonado por esse capítulo épico da saga coral. Conta ele:
–
Dias antes do embarque da nossa equipe, o submarino alemão U507, num só dia,
nas costas de Sergipe e da Bahia, afundou três navios brasileiros, o Araranguá,
o Baependi e o Comandante Benévolo. Além disso, ainda atingiu um barco de
pesca.
Por
isso, onde chegava, a equipe coral era exaltada pela coragem de, enfrentando o
perigo, protagonizar uma façanha tão marcante.
O submarino alemão que afundou vários navios brasileiros |
OS ENXERTOS
Como
foi dito no capítulo inicial desta série de reportagens, como não pôde contar
com alguns de seus titulares, numa época em que o profissionalismo não era tão
arraigado, o Mais Querido foi forçado a contratar provisoriamente jogadores
que, terminado o Campeonato Pernambucano de 1942, já não tinham mais ligação
com o clube que haviam defendido. Enxertar a equipe com atletas saídos de outro
time, ou até solicitados por empréstimo, com o contrato em vigência, constituía
um procedimento comum.
Foi
assim que o Santa aproveitou o goleiro King, o centromédio Capuco, o meia
Papeira e o ponta esquerda Pinhegas, recém-saídos do América. Vejamos duas
formações do Campeão do Centenário em que eles aparecem:
King, Zé Maria e Lucas; Pedrinho, Capuco e Jorge; Galego, Julinho,
Valdeque, Edgar e Pinhegas.(Empate de 1 x
1 com o Sport, em 16/07/42, na Ilha do Retiro). Juiz, Argemiro Félix de Sena,
Sherlock).
Leça;
Lucas e Durval; Edgar, Capuco e
Jorge; João, Isac, Julinho, Papeira e
Pinhegas. (Derrota para o Sport por 2x1, nos Aflitos, em 12/04/42, com arbitragem
de José Mariano Carneiro Pessoa, Palmeira, o mesmo que acompanhava o time tricolor
pernambucano, como árbitro e supervisor administrativo).
O
goleiro King também vestiu a camisa do Sport, como pode-se ver neste time rubro-negro,
de 15 de novembro de 1938: King;
Mulatinho e Fernando; Omar, Zago e Gelsomino (Zezinho); Plínio, Limoeiro, Caio
(Marcílio), Pitota e Djalma. (Vitória
sobre o Náutico por 4 x 3, no antigo campo da Jaqueira, gols de Limoeiro (3) e
Plínio, com arbitragem de Alberto Gomes Alves).
Já
o Santa Cruz havia terminado o campeonato de 1942 utilizando esta equipe: Eutímio;
Pedrinho e Sidinho II; Guaberinha, Pelado e Amaro Caju; Zé Pequeno, Tará,
China, Limoeirinho e Carneiro. (Derrota
para o Sport por 2x1 em 06/09/42, na Ilha do Retiro, com o Leão sagrando-se
bicampeão. Juiz, Palmeira).
Eram
todos jogadores bem comportados, porém, com os nervos à flor da pele, diante
das mais diferentes nuances que surgiam a cada dia. Para os foliões da
delegação a saudade aumentava só em pensar que, com a aproximação do Carnaval,
as mais diversas agremiações realizavam os tradicionais ensaios de rua, cada
qual sentindo-se na obrigação de fazer uma rápida apresentação à frente do Diario de Pernambuco e do Jornal do Commercio, com o
porta-estandarte fazendo o cumprimento de praxe ao órgão da imprensa que estava
sendo visitado. A imaginação da turma fervilhava. E a ansiedade pela volta para
casa aumentava.
Reportagem especial no Diario de Pernambuco |
ADEUS, KING
O
Santa Cruz prosseguia na sua luta pela sobrevivência em Belém, salvando-se como
podia. Na tarde de 3 de março, o Tricolor jogava contra o Remo, em partida revanche,
com renda dividida. Saía de campo ovacionado após uma sensacional vitória pela contagem
de 4 x 2. Os jogadores comemoraram discretamente, por causa do crítico estado
de saúde dos companheiros King e Papeira. Na madrugada seguinte, precisamente
às 2h35 do dia 4 de março de 1943, uma quinta-feira, o coração de Ericson Viana, King, deixou
de bater. O goleiro morreu no Hospital de Beneficência Portuguesa.
A
notícia repercutiu intensamente na capital do Pará. A Federação Paraense de Desportos
(FPD), hoje Federação Paraense de Futebol (FPF), assumiu as despesas do enterro,
de luxo, diga-se de passagem. O corpo ficou em câmara ardente no Salão Nobre da
FPD, aonde compareceram desportistas e simples torcedores da terra marajoara
para prestar a última homenagem a quem saíra de tão longe para encerrar seus
dias distante da família, mas gozando do afeto dos companheiros de time. Mais de 50 carros formaram o cortejo fúnebre.
PAPEIRA TAMBÉM SE FOI
Não
precisa falar da forte comoção causada pelo falecimento do goleiro King. Mas o
show precisava continuar. O Santa Cruz, com destino incerto, não podia ficar de
mãos abanando em terra estranha, não obstante a amabilidade com que a equipe era
tratada. Não poderia haver outra
alternativa. O time não poderia viajar por falta de autorização das autoridades
navais. Teria de se sustentar a si mesmo e somente poderia fazê-lo jogando. E
sem contrato de jogos tinha de se submeter às propostas que lhe eram feitas. Na
realidade, aqueles jogadores já faziam parte da paisagem de Belém, naquele
tempo com pouco mais de 200 mil habitantes – o Recife já superava a casa de 400
mil moradores e era a terceira cidade do Brasil, perdendo somente para São
Paulo e Rio de Janeiro. a Capital Federal.
A
guerra continuava, fornecendo suas notícias, algumas animadoras, como esta: “Na
Argélia, ingleses e americanos apertam o cerco em torno das tropas do general
Rommel, a Raposa do Deserto”, mostrando mais um sucesso das Forças Aliadas
sobre os nazistas.
Quatro
dias depois da morte de Papeira, em pleno domingo de carnaval, Santa Cruz e
Paysandu, que empatariam por 1 x 1 (Guaberinha marcou para o Santa), entravam
em campo, de luto, numa homenagem póstuma a King. Sem querer, os tricolores também davam o último
aceno a Mário Braga, o atacante Papeira. Este, precisamente às 16h30, enquanto a bola
rolava em mais um jogo ‘caça níquel’ do Santa Cruz, fechava os olhos para
sempre.
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