SHERLOCK, O HOMEM DA LEI

 Lenivaldo Aragão



Argemiro Félix de Sena, consagrado no futebol pernambucano como Sherlock, antes de abraçar a arbitragem foi jogador, tendo sido tricampeão pelo Santa Cruz em 1930-31-32. Nascido na casa 128 da Rua Imperial, ainda adolescente formou um time, o Guanabara. Na área havia outra equipe, o Concórdia, em que atuavam Carlos Benning e Lauro, do terceiro time – o sub-20 de hoje – do Santa Cruz. Convidaram-no para um teste. O ponta-direita Sherlock topou a parada, mas foi designado para treinar na zaga, pois um dos titulares havia faltado. Aprovou na nova posição e foi logo assinando a proposta de sócio atleta. Só precisou fazer dois jogos, como zagueiro, para imediatamente ser promovido ao segundo time. Pouco tempo depois estava na equipe principal. Ao mesmo tempo em que jogava futebol, atuava no basquete, era remador e participava de corridas. Tratava-se, portanto, de um atleta eclético.

CABELO, BARBA E BIGODE

Primeiro árbitro de Pernambuco a fazer parte do quadro da Fifa, o que ocorreu em 1938, foi também pioneiro no uso do calção, na atividade, no Estado. Sua estreia no Campeonato Pernambucano, deu-se de maneira bastante curiosa. Em 1934 foi aprovado pela Federação Pernambucana de Desportos (FPD), antecessora da atual Federação Pernambucana de Futebol (FPF), para dirigir jogos de terceiro time, posteriormente juvenil, hoje sub-20. Numa certa manhã de domingo comandou um acirrado Náutico x Sport pelo certame da meninada. À tarde foi assistir ao encontro principal, novamente reunindo alvirrubros e rubro-negros. O juiz da preliminar faltou e ele quebrou o galho, arbitrando o duelo dos segundos times, os aspirantes do futuro. Para completar, o homem escalado para a partida principal do Clássico dos Clássicos também farrapou. E lá se foi Sherlock apitar seu terceiro jogo num só dia, reunindo os mesmos clubes, em divisões diferentes. Assim, ele estreou oficialmente, fazendo cabelo, barba e bigode. Na época o futebol era puramente amador, jogava-se só por prazer. O mesmo acontecia com a turma do apito.

E O VENTO LEVOU



Sherlock era austero com o apito na boca, mas ao mesmo tempo espirituoso. Certa vez expulsou  Pitota, centroavante do Sport – nada a ver com o Pitota dos primeiros tempos do Santa Cruz, é claro, – num clássico com o Náutico. Como o jogador relutasse para sair, achando que estava sendo punido injustamente, o Homem da Lei, alcunha pela qual era conhecido, chegou-se a ele e disse, arrancando sorrisos dos demais jogadores:

– Se você sair depressa e tomar um banho rápido, ainda terá tempo de assistir E o Vento Levou, no Art Palácio.

Tratava-se de um filme dramático, com três horas e 58 minutos de duração, que fazia muito sucesso na época. Tinha como artistas principais, Vivien Leigh, Clark Glabe e Leslie Howan, da primeira linha da cinematografia mundial.

O cinema Art Palácio, inaugurado em 1940, era localizado num prédio ainda hoje existente, situado nas esquinas das ruas da Palma e Matias de Albuquerque, no bairro de Santo Antônio, no centro do Recife.

PITOTA NOVAMENTE

Sherlock não se comprazia em expulsar jogador, mas fazia questão de cumprir rigidamente aquilo que as regras do futebol determinavam. Se alguém reclamasse, tinha uma resposta na sua voz um pouco grave, falando pausadamente:

– É a lei...    

Noutro Clássico dos Clássicos, Pitota voltou a ser expulso por Sherlock. Num jogo bastante tumultuado, além do centroavante do Sport, foram tomar banho mais cedo seus companheiros de time Zé Pequeno, Clóvis e Zago, e  Sabino e Mário Ramos, do Náutico. Portanto, seis expulsões numa só partida.

CASTIGO

Num Sport x Great Western – virou  Clube Ferroviário do Recife –, Sherlock marcou a cara de um torcedor que passou o jogo ‘elogiando’ sua mãe. Encerrada a partida, pulou a cerca baixinha, que separava o público do campo, e sem ao menos conversar, meteu a mão no pé do ouvido do torcedor, de nome Floriano, o qual, tempos depois reencontrava seu agressor, agora na Federação.

Floriano tinha ido se submeter a um teste para juiz. Por ironia do destino, o examinador era o antigo algoz. Foi aprovado. E passaram a conviver pacificamente.


 

ATÉ O CÉLEBRE HELENO  ‘DANÇOU’

Dirigindo um Fluminense x Botafogo pelo Campeonato Carioca, em dado momento advertiu o botafoguense Geninho. Este tinha insinuado que ele  estava protegendo Ademir, do Flu, seu conterrâneo do Recite. Geninho já o conhecia e preferiu fechar o bico dali para frente.

Aos 17 minutos de jogo, o genial e genioso Heleno de Freitas, do Botafogo, a maior estrela do futebol carioca naquele tempo, com fama de galã, arrancando suspiro das mulheres, onde chegasse, famoso por suas reações intempestivas dentro de campo, apelidado de Gilda pelos torcedores adversários, em relação a um filme famoso, se indispôs com Gualter, do Fluminense.

O árbitro pernambucano não contou até dez para mandar os dois irem assistir ao restante do jogo da arquibancada, não obstante os protestos do temperamental Heleno. .

FESTIVAL DE EXPULSÕES NA BAHIA

Pela sua capacidade e pela honestidade, o famoso árbitro era sempre convidado para atuar, principalmente em decisões, noutros Estados.

 Numa dessas ocasiões foi a Salvador dirigir uma final do Campeonato Baiano em que o Bahia derrotou o Galícia por 3x0 e fez a festa. Mais uma vez, seis jogadores não chegaram a terminar a partida, por terem saído da linha: Fala-Baixinho, Dino, Paulo Teiú e Valter, do Galícia; Viana e Camerino, do Bahia.

CRONÕMETRO, UMA NOVIDADE

Todos deleitavam-se com suas histórias e com os termos que usava, em tom de brincadeira, ao dirigir-se aos subordinados ou pessoas mais chegadas, tais como, “facínora”, “elemento deletério”, “fariseu”, “energúmeno” etc. Fumava muito, só não comprava cigarro.

Durante algum tempo, Sherlock alimentou uma certa rivalidade com seu colega de arbitragem e amigo José Mariano Carneiro Pessoa, o célebre Palmeira, que depois passou a ser técnico.

Palmeira certa vez apareceu no Café Lafayete, o point do futebol naquela época, situado na esquina da Rua do Imperador com a Primeiro de Março,   exibindo um cronômetro. Uma estupenda novidade, pois podia ser parado a qualquer momento em que o jogo fosse interrompido. Foi até notícia de jornal. Sherlock ficou juntando dinheiro e só descansou quando conseguiu comprar um, igualzinho, a um gringo que vendia muamba, ou seja, artigos contrabandeados, uma vez que o moderníssimo relógio era importado.

O JOGO DA RÁDIO

Em 1938, o Homem da Lei, que também não abria concessões ao visitar os clubes suburbanos nos fins de semana, como fiscal  do ECAD, entidade que cuida dos direitos autorais, estreou no Campeonato Brasileiro de Seleções, dirigindo Paraíba x Rio Grande do Norte. Preparou-se com esmero para esse encontro. É que pela primeira vez, um jogo por ele comandado seria transmitido pela Rádio Clube de Pernambuco, a tradicional PRA 8, a única existente em Pernambuco naquele tempo. O alagoano José Renato narrava e o pernambucano Antônio Maria – mais tarde, famoso cronista e compositor – lia as mensagens comerciais.

MISTER BARRICK DA MANGUEIRA

Ainda em 1938, Sherlock foi o primeiro árbitro pernambucano a apitar de calção. Coisa improvisada, nada programado. Escalado para um Náutico x Sport, o Clássico dos Clássicos, preparou o uniforme com o capricho de sempre: calça e camisa brancas, engomadinhas, e tênis da mesma cor. Chegou ao campo da Jaqueira debaixo de um tremendo temporal. Com o gramado enlameado teve pena de sujar a calça e o sapato. Pediu emprestados um calção e um par de chuteiras a um dos times e resolveu o problema. Não evitou que o público lhe presenteasse com uma sonora vaia, por não estar acostumado com aquele traje na arbitragem.

Tempos depois passou pelo Recife um árbitro inglês, Mr. Barrick, que acompanhava a equipe do Vasco numa excursão ao Nordeste. O britânico apitava de calção.

Depois que o europeu foi embora, Sherlock passou a usar o novo uniforme, definitivamente. Para reproduzir a vestimenta daquele que lhe serviu de espelho, cortou uma calça velha, azul, usando paletó da mesma cor e camisa branca. Como os torcedores acharam que se tratava de pura imitação, passaram a chamá-lo de “Mister Barrick da Mangueira”, em alusão ao popular bairro recifense da região de Afogados, onde havia uma turma da pesada.    

CALÇADA DO SAVOY

Na época em que a calçada do Bar Savoy, na Avenida Guararapes, se constituía num ponto de encontro dos torcedores recifenses, com discussões pacíficas de manhã até a noite, cada qual puxando a brasa para sua sardinha, mas de maneira civilizada, sem estes arroubos de marginalidade que são vistos a todo o momento Brasil afora, Sherlock sempre aparecia para um dedo de prosa com os amigos, que eram todos ali presentes – torcedores, dirigentes, jornalistas.

De paletó, sem gravata, e chapéu, pedia um cigarro ao primeiro fumante que avistasse. E naquela época havia gente que gostava de dar uma tragada a perder de vista.  Sherlock fumava o “cigarro se me dão”, como se dizia.

Era interpelado sobre lances polêmicas, dava a sua versão, falando pausadamente e em tom professoral. Prolixo, cada explicação sua era uma aula de arbitragem. Brincalhão, mexia com e com outro, mas ninguém se aborrecia. Sem ser formado, tinha a leitura como robe e nos seus diálogos sempre mencionava fatos e personagens da literatura.

Por ter sido tricampeão pelo Santa Cruz – Diógenes; Sherlock e J, Martins; Marcionilo, Sebastião da Virada e Zezé; Walfrido, Limoeiro, Tará, Louro e Carlos Benning– esta uma das formações do Tricolor naquela época, o conhecido árbitro evitava ser escalado para dirigir jogos da Cobra Coral, principalmente clássicos. Não queria que um possível erro fosse interpretado como um favorecimento ao clube que havia defendido com tanto empenho. Porém, nem sempre era atendido.

Quando ia apitar em Caruaru costumava se hospedar na casa de uma irmã ali residente. Assim evitava o assédio do pessoal ligado ao futebol no hotel onde estivesse.



ORIGEM DO APELIDO

 Na adolescência, Argemiro Félix de Sena devorava tudo o que podia sobre o detetive Sherlock Holmes, criação do escritor escocês Conan Doyle. Um dia, na escola, houve o roubo do sanduíche de uma aluna. Sherlock, até então tratado pelo nome, Argemiro, fez as vezes do personagem que tanto admirava. Começou uma investigação na sala de aula, foi eliminando suspeito após suspeito, até chegar ao ‘ladrão’. Descobriu que um dos alunos tinha os dedos manchados de verde. Deu o tiro certo porque a única pessoa que usava tinta daquela cor, para escrever, era a dona do sanduíche, cujo tinteiro havia sido ‘atropelado’. Dessa maneira  denunciou o culpado. Sabedores de sua paixão literária, os colegas passaram a chamá-lo de Sherlock. O apelido ficou para o resto da vida. Às vezes também era tratado por Detetive.

A escola de arbitragem da FPF leva o seu nome. Uma homenagem das mais justas, dada a longa folha de serviços prestados por essa personagem sempre lembrada do futebol pernambucano. Além de ter sido juiz, dirigiu durante muito tempo o Departamento de Árbitros. Nascido em 1910, morreu em 1991, com 81 anos. Dirigiu 353 partidas.

(Aguardem algumas histórias hilariantes, tendo o Homem da Lei como personagem)

 

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