BOLA, TRAVO E CANELA-Lenivaldo Aragão

 Duque, João de Maria, tic-tac no bode e um tupamaro no meio

 



Véspera de um jogo importante do Santa Cruz. O técnico Duque como era praxe, consultou uma mãe-de-santo conhecida, que lhe pediu um bode cem por cento preto, sem qualquer sinal branco, para ser oferecido aos orixás. Pragmático e obediente, o treinador despachou seus assessores de confiança para irem em busca do caprino capaz de atender às exigências extraterrenas. Uma tarefa não tão fácil. No Agreste ou no Sertão, num abrir e fechar de olhos, a oferenda estaria no terreiro. Mas no Recife...

            Lá se foi, num sábado à noite, o massagista João de Maria, dirigindo o carro do volante Norberto. Com ele, o roupeiro Luís e Mallada, um médico uruguaio, que havia caído de paraquedas no Arruda. Era pau-pra-toda-obra. Ultrapassaram as fronteiras municipais e foram até Jaboatão dos Guararapes. Em vão. Nenhum bode dando sopa na escuridão. Havia pressa. João de Maria atolou o pé, na volta. De repente, foi parado por um soldado do Exército, de fuzil à mão. Foi aí que descobriu que passava muito acima da velocidade permitida, diante do quartel do 14º RI, na Vila Militar Floriano Peixoto, em Socorro. Logo apareceu o oficial-de-dia, dando esporro e ameaçando prendê-los. Todos com muito medo. Finalmente, eram tempos brumosos, época dos atos institucionais, com os “subversivos” sendo farejados por todos os quadrantes. No caso do trio, o perigo aumentava por causa da presença de Mallada. Magro, olhar meio desconfiado, fala atrapalhada, sua aparência tinha tudo a ver com o apelido de Tupamaro que lhe haviam dado no Arruda. (Tupamaros eram os integrantes do “Exército de Libertação Nacional”, que, através da guerrilha urbana, combatia o governo militar no Uruguai. Na verdade, descobriu-se depois, realidade, Mallada era um deles. Fugido de sua terra, apareceu no Arruda lavando os carros dos jogadores. Depois identificou-se como massagista e começou a ajudar João de Maria. Até que um dia se declarou médico e revelou sua legítima identidade. E por lá foi ficando.)

            Com muita lábia, a trinca foi liberada. Ao deixar a área militar, João de Maria, no passado, jogador do Santa, disparou novamente, agora rumo a Paulista, no lado oposto, depois de atravessar o Recife e Olinda. Na praia da Conceição, vibração. Era como se o Santa tivesse feito um gol no Sport, seu adversário do dia seguinte. Um bode preto apareceu junto da pista, certamente enviado pelos deuses. Todavia, logo veio a decepção. Não servia porque a perna direita tinha uma pequena mancha branca. João de Maria chegou a propor que se pintasse aquela parte com tic-tac, a tinta que os engraxates usam. Negativo. Se por qualquer motivo a tinta desaparecesse, os três ficariam sujos com o homem. Conformados com o fracasso, já em plena madrugada, resolveram regressar. Duque não iria gostar, sabiam, pois se sentiria espiritualmente descoberto. Mas, fazer o quê?

            Só que a aventura não parou aí. Ao ser abordado pela Polícia Rodoviária estadual, no Janga, João de Maria descobriu que a documentação do veículo que, como foi dito, pertencia a outrem, no caso o jogador Norberto, estava irregular. Desculpou-se  e identificou-se como massagista do Santinha em missão oficial. Caiu nas graças de um guarda, tricolor de corpo e alma, que aproveitou para lhe pedir um favor. “Sou sócio, mas estou com a mensalidade atrasada. Vocês podiam dar um jeito nisso aí?” Positivo. João pegou a carteirinha do guarda e botou no bolso, prometendo zerar a dívida. O que  jamais aconteceu. Nem também a carteira foi devolvida. Cioso de sua responsabilidade, o trio ainda passou, inutilmente, pelo matadouro de Peixinhos, hoje desativado.

            Na hora do jogo, os três torceram ardorosamente para o Santa vencer o Sport. Só assim tirariam um peso da consciência e poderiam encarar Duque numa boa. Mas deu o contrário. Vai ver que com o tic-tac no bode teria havido pelo menos um empate...

 

 

 

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