Presidente do Comércio deu um chute no preconceito racial
Numa época em que asfalto nas estradas do Nordeste era
perna de cobra, o Comércio Futebol Clube aventurou-se a sair de Caruaru, comendo
poeira um dia inteiro, para jogar amistosamente em Juazeiro da Bahia. Esta cidade,
como se sabe, é gêmea da pernambucana Petrolina, tendo o Rio São Francisco como
divisória. É a mesma do imbróglio havido recentemente quando do jogo do Sport
lá, pela Copa do Brasil.
Entre equipes amadoras ou semiamadoras, uma partida assim,
a quase 800 quilômetros de distância, era recebida pelos jogadores com muita
alegria. O Central ainda não havia entrado no Campeonato Pernambucano, e a
disputa do título de campeão caruaruense pelo trio Central, Comércio e Vera
Cruz era acirrada.
Cada um com seus cartolas puxando a brasa para sua
sardinha, como Pedro de Melo, José Teixeira, Pedro Victor de Albuquerque, Elias
Soares e o jornalista Celso Rodrigues (Central); Walter Lira, ou Walter
Branquinha, ex-goleiro e agora presidente, Mário Cabral, Tio, Dandão
(Comércio); Antônio Inácio de Souza e seus filhos Humberto e Gilberto, cronista
Waldemar Porto (Vera Cruz) e por aí vai.
Pairando sobre eles, a figura diplomática e pacificadora
de Gercino Tabosa, gerente de banco, um gentleman, presidente da LDC, a Liga
Desportiva Caruaruense. São Paulo e
Rosarense eram meros participantes e vez por outra um deles atrapalhava a vida de
algum pretendente à coroa.
A turma do Comércio sabia que o Veneza, o adversário a
ser enfrentado em Juazeiro, merecia respeito, uma vez que vinha de vitórias
sobre o poderoso Bahia (4x1) e o Fluminense de Feira de Santana (2x1). Depois
de uma cansativa, mas divertida peregrinação, a ‘embaixada’ de Caruaru chegou a
Petrolina, onde ficou hospedada, já com a noite iniciada. Enquanto os jogadores
repousavam, depois do jantar e da resenha, que não pode faltar numa ocasião
dessas, os dirigentes aproveitavam para fazer a famosa digressão pela cidade
onde a família Coelho dava e continua a dar as cartas.
No dia seguinte, após o almoço, a turma de Caruaru atravessou
a ponte, lutou muito diante da arrumada equipe do Veneza, mas não conseguiu
evitar a derrota. Porém, nada que fizesse vergonha, apenas 1 x 0.
Como sempre acontecia nessas excursões, estava anunciado
um baile no Apolo Clube Social, oferecido pela sociedade juazeirense aos
‘ilustres visitantes.’ A boleirada ficou alvoroçada. A diretoria, integrada por
Walter Lira, Dandão, Mário Cabral, dublê de dirigente e treinador, e tendo como
convidado o comandante Paulo, do batalhão de Petrolina da Polícia Militar de
Pernambuco, fez-se presente. A comissão de cartolas estava ainda fazendo o
aquecimento etílico, e o zagueiro Celedino, um dos jogadores mais famosos
daquele tempo em Caruaru, logo começou a mostrar sua habilidade de dançarino,
ele que era bom de gafieira. Na realidade, ele não era do Comércio. Ligado ao
Central, tinha ido enxertar o time do hoje bairro Indianópolis, para usar um
jargão da época. O ziguezague de Celedino na pista de danças causava admiração,
mas, como alegria de pobre dura pouco, um dos jogadores foi solicitado por um
dirigente do Apolo a avisar à diretoria visitante que desse um jeito de tirar o
dançarino do salão.
– O clube não permite a entrada de preto e muito menos
que dance – avisou.
Ao receber o recado, doutor Walter Lira, um cidadão pacato
e festeiro, mas decidido, que não era de levar desaforo para casa, deu logo sua
sentença, de modo a que todos ouvissem:
– Onde o presidente do Central entrar, os jogadores
também entram. Vamos embora!
O capitão Paulo queria acabar com o baile. E até que
podia. Era só mandar a orquestra parar de tocar, uma vez que o conjunto musical
pertencia à Polícia Militar. Todavia, o oficial foi acalmado pelos
caruaruenses.
Nesse ínterim vai chegando o lateral Escurinho com outro
grupo. É advertido pelo zagueiro Lala de que negro não pode participar do
baile. Nisso, o presidente Walter Lira
puxa sua turma para uma sorveteria situada nas imediações, também chamada de
Apolo e dá o grito de alforria:
– Onde o presidente do Comércio bebe, os jogadores também
bebem!
A cerveja e o rum, muito em voga na época, animaram a
noite dos caruaruenses, pretos e brancos, com muita conversa e muita batucada,
tudo por conta da Casa, ou seja, o Comércio Futebol Clube.
Republicado no meu Blog
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