LEMBRANDO ARISTÓTELES CANTALICE


Em homenagem ao amigo que acaba de nos deixar, vitimado pela Covid-19, reproduzo o capítulo intitulado “Garçom torcedor vai à forra”, publicado no meu livro “No Pé da Conversa”, editado em 2003.


Ilustração de Humberto Araújo
 

 

Houve uma época em que o ex-juiz Aristóteles Cantalice almoçava diariamente no Restaurante Aviz, onde havia um garçom de nome Silva, uma espécie de patrimônio da casa, que tinha a maior intimidade com os clientes e com o proprietário, Fernando. Rubro-negro doente, Silva era capaz de largar a bandeja no meio do caminho, deixando o freguês na mão, se alguém o interpelasse para falar de futebol, principalmente quando o assunto era o Sport. Cantalice inúmeras vezes foi atendido por Silva, que também dava uma mãozinha como maitre. Sempre tinha uma reclamação a fazer, naquela de “você acabou com meu time” ou “aquele pênalti nunca existiu”, ou ainda “sua cara não nega, você é contra o Sport”. Coisas de torcedor, que está sempre reclamando. Cantalice apenas ria e tirava de letra.

Havia uma turma que também frequentava o Aviz, liderada por Edgar, o ex-ponta-direita do Náutico, hoje um próspero banqueiro de bicho, e Chico Bilau, do Banco Safra, localizado ali pertinho, na Rua Estreita do Rosário, em pleno centro do Recife. O pessoal aproveitava-se da paixão de Silva pelo Sport para tirar um sarro, botando lenha na fogueira. Diziam que ele tinha razão nas suas queixas, pois estava provado que Cantalice não gostava mesmo do Sport e por isso prejudicava o time rubro-negro. O garçom engolia a corda e ficava furioso. Na realidade, ele era convicto havia muito tempo de que seu leãozinho não contava com a simpatia do juiz e que o pessoal ao dizer aquilo apenas confirmava suas suspeitas.

Certa vez, às vésperas de um Sport x Santa Cruz que seria disputado na Ilha do Retiro, Edgar e seus amigos, naquela de ver o circo pegar fogo, encheram a cabeça de Silva de que era preciso ter cuidado. O juiz indicado pela Federação tinha sido Aristóteles Cantalice, justamente aquele que ele considerava o inimigo número um do Sport. O garçom amanheceu o domingo preocupadíssimo. O Sport precisava ganhar o jogo para disputar a liderança do campeonato, mas se o juiz prejudicasse? Na segunda-feira, na hora do almoço, Cantalice iria ouvir poucas e boas – Fernando, o dono do restaurante, gostasse ou não gostasse.

Logo passou do pessimismo para o otimismo. Finalmente, seu time tinha bola para dar no Santa, quisesse ou não quisesse o homem de preto. Almoçou cedo, trajou-se a caráter e se mandou para a Ilha, juntando-se à galera e esbanjando animação. Mas foi o trio de arbitragem entrar em campo para as preocupações voltarem a povoar sua já atordoada cabeça.

Bola rolando em pleno Clássico das Multidões, Silva, já de espírito preconcebido, via a cada lance a mão de Cantalice prejudicando o Sport. Não se conteve: vestido numa camisa rubro-negra, encostou-se ao alambrado e começou a espinafrar o juiz, chamando-o disso e daquilo. A certa altura, quando acompanhava uma jogada junto à lateral, Cantalice reconheceu a voz que o esculhambava e não foi difícil divisar seu velho conhecido. Em dado momento, quando a espinafração tornava-se mais violenta, pois Silva não parava, o juiz deu uma de migué, fez que estava ajeitando o meião, quase em cima da linha e, não se sabe se por gozação ou de fé mesmo, chamou o juiz reserva e apontou para o torcedor que o estava azucrinando. O regra-três dirigiu-se a alguns policiais que estavam e serviço no estádio, e Silva teve que deixar o local na marra. Porém, antes da retirada forçada, foi à forra, provocando muitos risos:

– Cantalice, juiz ladrão, você nunca mais come fiado no restaurante!    

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