De Miruca a Araponga, uma eternidade nos Aflitos

O quase eterno roupeiro Araponga (Náutico/Net)



– Olha Araponga, ali.
A frase do lateral-direito Gena, numa tarde de 1968, provocou uma gargalhada geral entre os jogadores do Náutico, que, sentados à beira do gramado dos Aflitos, esperavam o início de mais um treino do então pentacampeão pernambucano, na sua marcha em busca do Hexa.
O novo roupeiro do clube, Severino Matias de Carvalho, atravessava o portão diante das sociais, e perdia naquele momento o apelido de Miruca, trazido do time dos portuários. Trabalhava nas Docas, torcia pelo Timbu e era veloz como Miruca, um ponta-direita paraibano, que brilhou no Treze, Náutico, Santa Cruz e São Paulo. Os colegas peladeiros, no Porto do Recife, viam muita semelhança entre Severino, ou Biu, e Miruca, no trato com a bola. Porém, aos olhos de Gena, ele tinha mais jeito de Araponga, um meia-armador do Santa Cruz, como Miruca procedente de Campina Grande.
Momentos depois da ‘sentença’ dada por Gena, um dos maiores laterais do futebol brasileiro naquela época, o técnico Duque sacramentava o novo apelido:
Araponga, traz as bolas pro campo.

CATIMBOZEIRO
Se há uma pessoa engraçada, esta é Araponga. A começar pelos dribles que dá nos pedidores de camisa. Dificilmente esquenta a cabeça. Ao contrário, com seu jeito calmo e andar desapressado, normalmente desarma as cabeças mais apoquentadas. É sobretudo, espirituoso.
Certa vez chegou aos Aflitos um grupo de um certo Instituto de Línguas, oferecendo um curso de inglês aos jogadores. Sem saber com quem estavam falando, depararam-se com Araponga e sua verve:  
 – É trabalho perdido. Os jogadores daqui dizem que descem pra baixo e sobem pra cima, e que só falam brasileiro...
            Araponga pode não ter superstições, mas como roupeiro, é obrigado a conviver com as dos outros. No tempo do técnico Duque, por exemplo, guardava com muito carinho a camisa surrada que o treinador usava durante todo o campeonato, bem como o velho par de meias de cores diferentes, outra ‘simpatia’ do mineiro. Por essas e outras terminou sendo chamado de catimbozeiro.
– Quem fazia tudo era João de Maria (um antigo jogador do Santa Cruz, que virou massagista e que, além do Tricolor, trabalhou no Alvirrubro) – defende-se. E haja pinhão roxo, sapo costurado, sal grosso, galhos de arruda e coisas do gênero.

Gena, autor do apelido (Reprodução internet)



            CHATO POR CHATO...
Quando anos mais tarde, o outro Gena trocou o Sport pelo Náutico, o roupeiro ao ser cumprimentado pelo recém-contratado, com o clássico “tudo bem?”, surpreendeu o volante sergipano com esta resposta:  
– Tudo bem, Gena. Disseram que você é muito chato, mas eu sou mais chato ainda. Então, acho que a gente vai se entender.
O recém-chegado abriu um sorriso amarelo e foi em frente, achando que tudo não passava de uma brincadeira do funcionário do clube. E era. Mas com algum cunho de verdade.

O Araponga original (Reprodução internet)


A CONFUSÃO DE 1983

            Decisão do Supercampeonato Pernambucano de 1983 entre Náutico e Santa Cruz, no Arruda. Casa cheia, pois 76.636 torcedores haviam comparecido ao Mundão. Houve empates nos 90 minutos e na prorrogação, por 1 x 1 e 0 x 0, surgindo a necessidade da cobrança de pênaltis. A disputa estava empatada, e num chute do alvirrubro Porto, outro paraibano, houve a impressão de que a bola tinha ultrapassado a linha fatal, porém, o goleiro Luiz Neto foi muito rápido, puxando-a com grande habilidade e deixando-a sobre a linha. E começou a comemorar a grande defesa, sob protestos da timbuzada, que só faltava dar no juiz, o paulista Laerte Marquezine, contratado pela Federação Pernambucana de Futebol.
O técnico Ernesto Guedes, do Náutico, suspenso e obrigado a ver o jogo do lado de fora, agitava na arquibancada. O massagista Charles ia lá junto dele a todo instante para receber as ordens. Por coincidência, no momento da confusão, quem comandava a equipe tricolor era o assistente-técnico, o ex-lateral Pedrinho, porque Carlos Alberto Silva tinha sido expulso do banco. Em meio ao bafafá, Araponga ainda teve nervos para brincar.
– Vamos deixar com dois campeões, e gente racha o bicho – disse a Pedrinho, que pareceu ter levado a sério a chacota:
 – Nada disso, já que estou aqui, perco ou ganho.
 A confusão engrossava, e o árbitro era acossado por uns e outros.
Lá para as tantas, Ernesto Guedes invadiu o campo e gesticulou para as arquibancadas, incitando os torcedores a acompanhá-lo. Sem dúvida, uma atitude irresponsável e inconsequente. Ainda bem que a galera não atendeu ao tresloucado treinador. Como a cobrança de pênaltis não havia terminado, e por estar a fim de melar, o técnico alvirrubro dirigiu-se a Araponga:
  – Vai lá e bota fogo na rede!
 O roupeiro foi logo apontando para um determinado ponto do estádio:
 – Olha ali, tem um bocado de guarda, cada um com dois metros de altura. Se você quiser ir, vá. Eu mesmo não.
 É claro que o gaúcho Ernesto Guedes ficou na dele. Pouco tempo depois, o Santa dava a volta olímpica, festejando seu terceiro supercampeonato.

O agitado técnico Ernesto Guedes (TerceiroTempo-Uol)


CAPRICHO DE NUNES

Episódio divertido aconteceu na época em que Nunes, o Cabelo de Fogo, defendeu o Náutico. O sergipano – nascido em Cedro de São João (SE), mas registrado em Feira de Santana (BA) – tinha oito pares de chuteira, e sempre que o Náutico jogava fora dos Aflitos, queria que o roupeiro levasse todo o estoque. Num clássico com o Santa Cruz, no Arruda, Araponga achou que meia dúzia dava para quebrar o galho e deixou os dois pares restantes na rouparia. Só que na hora de se aprontar para entrar em campo, o João Danado achou de pedir justamente, um dos pares que haviam ficado no clube.
Isso é implicância, pensou Araponga, pois o atacante jamais usara tais chuteiras. Nunes insistiu muito, mas o roupeiro terminou lhe entregando um dos pares que estavam no saco. O jogador resmungou durante uns 10 minutos, mas acabou calçando.

O centroavante Nunes

            Bola rolando, Araponga torcia a cada arrancada de Nunes para que o gol saísse e o Náutico vencesse a partida, lembrando-se de um sábio conselho do técnico Orlando Fantoni:
– Tenha muito cuidado porque o jogador nunca tem culpa das coisas. Quando ele escorrega, olha logo para o pé e com isso está entregando o roupeiro, insinuando que a culpa é da chuteira, mal cuidada, e não dele.
            Naquele dia, porém, Araponga respirou sossegadamente. O Náutico venceu o Santa Cruz, e mesmo com a chuteira indesejada, Nunes balançou a rede duas vezes, com um gol de falta e outro de bola correndo. Mas daí para frente, nunca mais quis correr o risco. Para onde ia, levava a carga completa.



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